“Os índios nunca foram atrasados, eles sempre viveram seu próprio tempo”
Carlos Walter Porto Gonçalves critica visão
eurocêntrica de “modernidade” e “atraso” e indica a importância da
resistência indígena e camponesa
07/12/2011
Joana Tavares,
da Reportagem
Adolescente indígena guajajara tem o rosto pintado - Foto: Christian Knepper/Funai |
O
professor Carlos Walter Porto Gonçalves vem dedicando suas análises
sobre a Pátria Grande, a América Latina. Um antigo defensor das lutas
indígenas e camponesas e ex-assessor de Chico Mendes, ele diz que não
faz sentido querer um ambiente sem gente nem um desenvolvimento para as
pessoas sem cuidar necessariamente do ambiente. Corrobora com a
filosofia do ex-líder sindical e ambientalista, assassinado em 1988:
“Não há defesa da floresta sem os povos da floresta”. E também se inclui
na filosofia do ecossocialismo, como a união das lutas contra a
devastação e o capitalismo. Nesta entrevista, ele fala sobre a América
Latina e a posição arrogante do Brasil, critica o projeto e a visão da
modernidade e defende a força da luta e das ideias indígenas.
Brasil de Fato – Por que há tanto desconhecimento no Brasil em relação à América Latina?
Carlos Walter Porto Gonçalves –
A história do processo colonial, o fato de o Brasil ter sido colonizado
por Portugal e a maioria dos países pela Espanha, implica certas
diferenças. Nosso continente foi marcado por presenças coloniais
diversas, como a inglesa, francesa, holandesa, e ainda há países que são
colônias mesmo hoje, como a Guiana Francesa. Mas não é só isso. Parece
que a nossa dificuldade de nos aproximar do resto da América Latina e do
Caribe não é uma questão de língua – com certo esforço a gente acaba se
entendendo –, mas o processo de independência diferenciado. O Brasil
não seguiu a ideia do “inventar ou errar” – uma expressão de Simón
Rodríguez – dos outros países, que tentaram inventar um regime
republicano, diferente do regime monárquico que reinava nas metrópoles
colonizadoras. O Brasil foi o único que fez a independência e se manteve
como império, inclusive com uma monarquia, com uma casa real. E achava
que por ser uma monarquia era superior às “repúblicas de caudilho” da
América Latina, expressão que continua a ser usada hoje pelas elites
brasileiras e pela mídia. E de certa forma os países de colonização
hispânica são obrigados a conhecer um pouco mais uma história que lhes é
comum, haja visto que muitos países surgiram se emancipando de outros,
como a Colômbia da Venezuela. A história deles tem que se remeter uma à
outra. A história do Brasil em face de nossos vizinhos é mais
desconfortável, por ter se apropriado de territórios que, a rigor, eram
de outros países. Cabe também falar que a maior parte das elites
formadas na América Latina continuou preocupada em se integrar com as
elites europeias e dos países imperialistas para continuar exportando
seus diversos produtos.
Qual o sentido político do termo “América Latina”?
O
termo “América Latina” foi usado pela primeira vez por um poeta
colombiano, José María Caicedo, num poema chamado “As duas Américas”, em
1854. Ele usou essa expressão com clara posição de tensão em relação à
América anglo- saxônica. Ele estava muito impactado pelo que havia
acontecido, numa data que todos nós deveríamos ter sempre em mente:
1845- 1848, que é o período da guerra dos EUA contra o México. Quando os
EUA fizeram a independência eram apenas as 13 colônias situadas a
leste. Todas as terras do Texas até a Califórnia – com todos aqueles
nomes em espanhol – foram tomadas do México. De certa forma, o Caicedo
dá continuidade ao que Simón Bolívar tinha percebido nos anos de 1820 em
função da posição norte-americana em relação ao Haiti, o primeiro país
do mundo a abolir a escravidão. O que faz os Estados Unidos? Junto com a
França, faz pressão para que o Haiti pague por cada escravo que tinha
se tornado livre, o que faz com que o país fique sufocado em dívidas. E
Simón Bolívar, que recebeu armas dos revolucionários haitianos para
fazer os processos de libertação da América Latina, percebe que a
doutrina de Monroe, “América para os americanos”, era para os americanos
do norte, para os estadunidenses. Percebeu isso em 1823 e denunciou
imediatamente, convocando uma integração entre os países, entre iguais,
não uma integração subordinada. Ele usava a expressão “Pátria Grande”, a
América integrada; ele dizia que tínhamos uma “pátria chica” – Brasil,
Venezuela etc. – mas também a Pátria Grande. Então, a expressão “América
Latina” tem um significado muito forte, porque abriga o caráter
anti-imperialista, antagoniza com a América anglo-saxônica. Mas ao lado
do seu caráter emancipatório, Caicedo não estava livre de um certo
eurocentrismo. A expressão ‘latina’ ignora todo o patrimônio
civilizatório que aqui existe e que não é de origem latina, como os
quéchuas, os aimarás, os tupiguarinis, os maias.
Qual o papel dos países latinoamericanos no mercado mundial?
A
demanda de matérias-primas em países como a China faz com que o Brasil e
outros países da América Latina passem por um processo de
reprimarização da sua pauta de exportações. E as pessoas estão vendo
isso como uma vantagem! Para os capitalistas com visão de curto prazo é
bom, porque estão ganhando dinheiro. Na verdade, isso é uma nova fase de
um processo que tem 500 anos. Sempre fomos exportadores de produtos
primários ou manufaturas. Há um mito de que estamos vivendo um processo
de modernização tecnológica, com o agronegócio e seus equipamentos
modernos. É um mito porque o Brasil no século 16 já exportava
manufaturados, como o açúcar. Nossa história é muito colonizada,
contamos a história como os europeus nos contaram. Inclusive europeus
que nos são caros, como Marx. Marx conta a história da revolução
industrial a partir da Europa, mas as primeiras manufaturas, os engenhos
de açúcar, estavam no Brasil, no Haiti, em Cuba. Nós já éramos modernos
tecnologicamente, mas uma tecnologia colocada aqui não para nos servir,
mas para nos explorar. A rigor, um trator e computador fazendo plantio
direto hoje é o equivalente ao que fazíamos no século 16, com tecnologia
de ponta. Que ideologia é essa da “modernidade” que achamos que veio
para nos salvar? A modernidade sempre nos fez ser o que somos. A gente
não consegue se desprender da ideologia eurocêntrica da modernidade e
acabamos propondo como solução o que é parte do problema.
O que são os megaprojetos de infraestrutura colocados para o continente hoje?
Há
muitos projetos de infraestrutura em curso. Na América Central, há um
projeto de integração física, que é o Plano Puebla Panamá, hoje
rebatizado como Plano Mesoamérica. E temos a Iirsa, Iniciativa de
Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana, proposta numa
reunião convocada pelo Fernando Henrique Cardoso no ano 2000. É um
grande projeto de portos, aeroportos, estradas, uma rede de comunicação,
que torna o espaço geográfico mais fluido e diminui o tempo socialmente
necessário para a produção. Essas obras estão sendo feitas a partir de
uma proposta das elites, feita pelo capital. No caso do Brasil, feitas
com a presença muito incisiva do BNDES, que tem mais dinheiro que o
Banco Mundial para investir. Esses investimentos já estão trazendo
problemas, no Equador, na Bolívia, na Argentina.
O Brasil tem uma postura imperialista em relação aos outros países da América Latina?
A
estratégia brasileira não é antagônica com a estratégia
norte-americana. A burguesia brasileira sabe manejar muito bem o Estado
quando lhe é conveniente. Sabe manejar o BNDES para os seus interesses,
usar os recursos. As grandes empresas de engenharia civil do Brasil
estão presentes em todos os países da América Latina. O complexo de
poder envolvido no agrobusiness é um belíssimo exemplo: é um complexo de
aliança política entre as burguesias brasileiras articuladíssimas com a
burguesia internacional, que estão se beneficiando dessas estruturas. É
uma burguesia associada ao imperialismo americano, mas que tem um
projeto próprio ao mesmo tempo. A ideia de subimperialismo de Ruy Mauro
Marini me parece correta. A diplomacia brasileira não usa o termo
“América Latina”, diz “América do Sul”, quer dizer, está preocupada com a
integração física para exportar. Estamos fazendo com nossos povos
aquilo que sempre fizemos desde o período colonial.
Como esse projeto impacta as populações indígenas e camponesas?
Quem
está se revelando os maiores antagonistas desse projeto são as
populações indígenas, camponesas e afro-latino- americanas. Elas que
estão sendo expulsas de suas terras. A Iirsa diz claramente que os
projetos vão se expandir para áreas de vazios demográficos. A Amazônia
não é vazia. Não é à toa que o imperialismo diz que os indígenas são os
novos comunistas. São áreas cujas populações historicamente sempre
viveram com a Pachamama. Os índios sequer têm um nome para a “natureza”,
porque significaria pensar o homem como fora da natureza. A Pachamama
não é a natureza, é a origem de tudo, de todas as energias, todos nós
fazemos parte dela. Eles não são antropocêntricos, não vivem na matriz
da racionalidade que vem da Europa, que hoje é parte da crise. Se há 50
anos as forças hegemônicas podiam passar um trator por cima dessas
comunidades, hoje essas populações conseguem se mobilizar e encontram
eco para suas denúncias. O próprio capitalismo não sabe o que fazer com
essas áreas. Tem um setor novo do capitalismo que é o da biotecnologia,
que depende de informação do geoplasma. Para esse capitalismo, a
diversidade biológica é um valor, ele se confronta com o capitalismo
predador que quer derrubar a mata para entrar com gado na Amazônia.
Hoje, o capitalismo tem dentro de si um confronto sobre o que fazer com
essas regiões. Nessa brecha de dúvida sobre o modelo que vai imperar,
abriu-se um espaço para que as populações indígenas encontrassem uma
possibilidade maior de falar. Antes havia um consenso, inclusive entre a
esquerda, com raríssimas exceções, que achava que tinha que passar o
trator. Era uma noção eurocêntrica de “moderno” e “atraso”. Os índios
nunca foram atrasados, eles sempre viveram seu próprio tempo. Para nós é
fundamental fazer a crítica não só ao capitalismo, mas à mentalidade
colonial, à colonialidade do saber e do poder. A discussão dessas
populações que estão sendo atingidas é fundamental. A própria ideia de
uma Via Campesina só é possível na medida em que essas populações
adquirem uma centralidade muito mais importante nos dias de hoje; o
campesinato e aquilo que o Darcy Ribeiro chamava de indigenato, um
campesinato etnicamente diferenciado. Estamos vivendo uma crise do
capitalismo e ao mesmo tempo uma crise de padrão civilizatório. E, nesse
sentido, até setores de esquerda, que embarcaram numa visão
desenvolvimentista, não perceberam que na verdade existem múltiplas
forças produtivas que se desenvolveram por populações outras. Já havia
uma sofisticada metalurgia entre as populações originárias de nuestra
América, uma sofi sticada agricultura, arquitetura, como Machu Pichu. Os
indígenas, sabe-se lá como, conseguiram preservar muitas das coisas
desse período, conseguiram manter sua identidade própria. Esses povos
têm algo a nos ensinar. Temos que ter a humildade de ver como, depois de
500 anos, eles ainda resistem com essa força. Eles estão mais vivos do
que nunca.
Carlos Walter Porto-Gonçalves
é doutor em Geografia e professor do Programa de Pós-graduação em
Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Foi presidente da
Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000). É Membro do Grupo de
Assessores do Mestrado em Educação Ambiental da Universidade Autônoma da
Cidade do México (Unam). Ganhador do Prêmio Chico Mendes em Ciência e
Tecnologia em 2004 e do Prêmio Casa de las Américas (Ensaio
Histórico-social) em 2008, é autor de diversos artigos e livros
publicados em revistas científicas nacionais e internacionais.
http://www.brasildefato.com.br/content/%E2%80%9Cos-%C3%ADndios-nunca-foram-atrasados-eles-sempre-viveram-seu-pr%C3%B3prio-tempo%E2%80%9D#.T5AxY4J8x3I.facebook
http://www.brasildefato.com.br/content/%E2%80%9Cos-%C3%ADndios-nunca-foram-atrasados-eles-sempre-viveram-seu-pr%C3%B3prio-tempo%E2%80%9D#.T5AxY4J8x3I.facebook
Nenhum comentário:
Postar um comentário